segunda-feira, 11 de abril de 2011

Muros

Há milhares de anos os muros têm feito parte da vida humana. Em todos os sentidos, seja denotativo ou seja conotativo. De acordo com a definição do dicionário Michaelis, muro é “parede forte que veda ou protege um recinto ou separa um lugar de outro”, sendo também “defesa, proteção” e, finalmente, é “motivo que separou ou malquistou duas pessoas”.

Assim, sabemos que é uma forma de proteger um determinado local ou de separar dois lugares entre si. Também pode, neste sentido, servir para esconder algo da vista externa ou impedir que o que se encontra no interior possa sair. Por outro lado, sabemos também que o muro pode ser um motivo qualquer que causa a separação entre duas ou mais pessoas. Neste caso, o muro ainda mantém suas características ligadas à proteção, à separação e à preservação. O que muda é que tudo se dá no campo abstrato dos sentimentos humanos e não mais no campo florido, ou não, da realidade física.

Tratemos, pois, ao longo destes próximos parágrafos, de efetuar uma pequena análise do muro através das similaridades entre estes dois sentidos tão opostos e tão complementares. Muitas vezes, existem campos espaçosos cuja superfície se cobre de flores no tempo apropriado. Não havendo um muro, tudo então se mistura. É como se as flores avançassem de um lado para o outro, rumando para as casas em busca dos corações das pessoas. Contudo, se alguém de repente ergue um muro no meio do terreno, provoca então a ruptura na paisagem ao separar as flores umas da outras. Elas tentarão avançar de um lado para outro do muro, mas não poderão atravessá-lo. E, aquelas que ficarem muito próximas, acabam sendo abafadas pelas sombras do muro e algumas nunca chegam a desabrochar. Há pessoas que gostam de muros como este, o qual vem para separar e, em conseqüência, ferir a paisagem. Essas pessoas, de tempos em tempos, empenham-se em manter o muro sempre conservado e não poupam esforços em sempre repor as pedras que porventura tenham saído de seus lugares. Afinal, “good fences make good neighbors.” Neste caso, é um muro de morte, cuja sombra será sempre uma sombra de morte e não de descanso. Ora, a morte é, de certa forma, a separação mais dolorosa, uma vez que não há possibilidade de impedi-la. Assim, crendo que um bom muro é o que faz um bom vizinho, o que na verdade se está fazendo é uma separação do espírito humano que é, naturalmente, voltado ao convívio e não ao isolamento.

Quando o ser humano se põe a consertar os muros que ele próprio levantou para se proteger ou se isolar de si mesmo, ele está abrindo mão de algo que é intrínseco à sua natureza, isto é, está abandonando a noção de viver em bando, a qual é o mais comum modo de viver entre os mamíferos. Robert Frost afirma que “o muro está onde dele não precisamos”. E diz ainda mais com uma dolorosa ironia que “as minhas macieiras nunca cruzarão a divisa para comer as frutas de seus pinheiros”. Ora, se não há necessidade de muros, então para quê erguê-los? Afinal, pés de maçãs não se arrancam do chão para devorar frutos de pinheiros! O que acontece é que muitos acreditam que os muros servem para proteger o que não precisa de proteção, mas tão somente de viver em paz em meio ao que é diferente. Macieiras e pinheiros são espécies diferentes, mas que podem viver perfeitamente juntas sem nada que as separe. Um pinheiro não machuca uma macieira e nem esta morde no galho mais baixo dele. Mas as pessoas, muitas vezes, não acreditam nisso e acham melhor separar tudo com um bom muro.

Às vezes, construir e manter um muro torna-se algo até mesmo imprescindível do cotidiano de muitas pessoas. Charles Fenyvesi acredita que “muros emolduram o mundo” e ainda que “que fazem muito sentido as divisões que produzem”. Sua maneira de ver o mundo dividido por muros é tida como algo natural e comum, sendo benéfico para o bom funcionamento da sociedade. Esta maneira de pensar faz eco ao pensamento do vizinho referido por Frost em seu poema, já que este acredita que bons muros fazem bons vizinhos. Contudo, é preciso ressaltar que os muros deste último caso apresentam características mais ligadas à sua utilidade para servir às pessoas e, não explicitamente, como forma de apenas separá-las. Para o autor, os muros podem criar um lugar para os lírios e outras flores, bem como criar ainda um local onde as crianças podem brincar uma vez que delimitam o seu espaço e o espaço das flores. Sua relação com os muros mostra-se contraditória quando afirma que muros não são para levantar divisas, mas “são para juntar, para construir e para lembrar”.

Muros, na maior parte das vezes, são feitos de pedras. Se não são feitos de rochas sólidas, o material de que são feitos tem origem nas pedras. Cimento, areia, cal ou barro são retirados das pedras, seja através de processos industriais ou através do processo natural de erosão das rochas. Assim, há uma relação estreita entre as pedras e os muros. Se um muro for feito de pedras, elas precisam antes ser ajuntadas para que então possam dar forma à construção do mesmo. Entretanto, podem ser ajuntadas também para outras finalidades, como veremos mais adiante.

Os muros cercam as cidades e cercam as pessoas. Da mesma forma em que são construídos muros em torno das cidades, as pessoas constroem muros em torno de si. E para quê o fazem? Inúmeras são as razões mas, dentre todas, talvez a mais simples seja apenas para proteção. As pessoas, homens e mulheres, precisam de proteção e crêem que o isolamento pode proporcionar-lhes isto. Erguem, durante a vida inteira, altos muros em torno de si, numa tentativa desesperada de manterem-se vivas. Enquanto estão cercadas por muros altos, dizem abertamente “I don’t need arms around me”! Esta afirmação, contudo, está carregada de contradição, já que tudo de que realmente precisam é apenas de braços que as acolham e envolvam com ternura. “I have seen the writing on the wall”, ainda falam e terminan afirmando desesperadamente que “No, don’t think I’ll need anything at all”. Mas precisam, e como precisam de alguém ou de algo em que apoiar suas vidas ou dar-lhes um sentido de ser.

A proteção de que muitas pessoas precisam, da mesma forma como o personagem do filme The Wall, realizado a partir da canção homônima, realiza-se na busca por relacionamentos estáveis. O personagem aqui referido teve sua vida marcada, por um lado, pela ausência do pai, e por outro lado, pela presença sufocante da mãe, como percebemos em “mama’s gonna keep baby healthy and clean”. Ou, ainda, pela tentativa da mãe em fazer ao mesmo tempo a figura materna e paterna. Esta situação acaba por encerrar o personagem dentro de um muro sufocante, que o impede de dar continuidade à sua vida de forma saudável. Os relacionamentos amorosos dele tornam-se dependentes da validação ou não efetuada pela mãe. A indagação expressa em “mother, do you think she’s dangerous to me” é carregada de uma extrema dependência da vontade materna. Parece ter havido uma castração da vontade do personagem, o qual teve como opção única o isolar-se dentro de muros.

The Wall ainda aborda temas que passam pela repressão social e política, pelo uso de drogas, pela dificuldade da realização amorosa e sexual, pela maneira como a morte é vista e vão até à constatação da insignificância da condição humana diante do desafio de viver. Todo este processo dinâmico e doloroso perfaz a vida de homens e mulheres desde o seu início até ao seu final. Os muros, então, são metáforas nas quais tudo isso se manifesta de forma cruenta e desnuda a condição humana em sua miséria absoluta?

Ao final do filme, o que resta é uma sensação de terrível catarse, em que houve uma purgação que repugna e desconcerta o pensamento. Então, permanece o eco sombrio de que “all in all it’s just another brick in the wall”. E, também, uma vontade infinita de quebrar o muro e abraçar a liberdade. Depois de quebrado, juntar suas pedras e nelas subir!

Cora Coralina foi feliz ao afirmar “ajuntei todas as pedras que vieram sobre mim”, já que então ela deu outra finalidade às pedras ajuntadas. A poetisa prossegue dizendo “levantei uma escada muito alta e no alto subi”. Ora, e para quê subir no alto? Primeiramente, para poder enxergar mais longe e, assim, entender melhor o mundo em que se está inserido. Quando se vê mais longe, a mente também vai mais além e tudo passa a ter um significado diferente. Estando no alto, recebe-se mais luz de todos os lados. Transpondo este raciocínio, pode-se dizer que estando no alto, é possível uma interação maior na aquisição do conhecimento e, então, ocorre uma expansão considerável da mente humana no sentido de compreender o mundo. Neste caso, ajuntar pedras para que nelas se possa subir passa a ser algo desejável e útil para o ser humano.

Ajuntar pedras simplesmente para ajuntar não tem sentido nem utilidade nenhuma. Deparar-se de repente com uma pedra e não fazer nada, ou apenas dela desviar, também não tem sentido. Se a pedra estiver num determinado lugar e lá permanecer não modifica as atitudes diante da vida. O que provoca a modificação é a utilização da pedra para fazer algo útil, seja um monte para nele subir ou um muro. Em tempo, muros também podem ser usados para neles se subir e ver mais distante. As crianças entendem bem disso!

Cora Coralina afirma que sua vida “cresceu entre pedras”, sendo que a mesma foi passada “quebrando pedras e plantando flores”. Imagem esta contraditória, uma vez que traz em si a idéia de dificuldades e dores ao mesmo tempo em que traz a noção de uma crença profunda e uma esperança perene na vida. Ora, quem se dedica ao trabalho de plantar flores, na verdade, precisa entregar-se a uma maneira positiva de viver a vida, embora saiba perfeitamente que é preciso quebrar as pedras que surgirem. Neste sentido, percebe-se novamente que as pedras não são deixadas inertes no lugar em que estão. Elas são quebradas! E a poetisa não questiona se são muitas ou se são duras; ela apenas as quebra e segue plantando flores.

Manoel de Barros, emprestando sua voz à pedra, ou assumindo a voz da pedra, depende de como pode ser vista a situação, reconhece o gosto em ser pedra. E percebe-se mais uma vez que se trata de uma pedra útil e que tem um propósito em existir e em ser. É uma pedra que realiza uma interação constante com o mundo em que está inserida, já que animais dela se utilizam, o sol e a lua banham-na com seus raios e os pássaros ocupam-na o tempo todo.

Erguer e derrubar muros parece ser algo intrínseco à natureza humana. Uns levantam, outros põem abaixo, num processo contínuo que atravessa a história da humanidade. Os muros de Jericó foram derrubados por fora; o muro de Berlim foi derrubado simultaneamente por quem estava de dentro e por quem estava de fora; os americanos ergueram uma cerca, que é também uma forma de muro, para impedir que os mexicanos atravessem suas fronteiras; as cidades antigas e medievais eram cercadas por muros dentro dos quais se espremiam as pessoas em ambientes insalubres. Enquanto assim é na realidade física, em seu íntimo cada homem e cada mulher sempre tiveram muros constantemente construídos e destruídos ao longo da vida.

Talvez por estarem assim tão estreitamente ligados à história humana é que o muro tenha sido tema de tantos artistas, poetas, escritores, pintores e filósofos. O muro é algo carregado de simbolismo, já que traz em si a noção de proteção e, simultaneamente, de separação. Para algumas pessoas, é algo essencial e deve ser sempre construído e mantido firmemente em pé; para outras, trata-se de algo que serve tão somente para segregar e deve ser destruído, já que simboliza uma maneira de tolher a liberdade.

Além destes aspectos, o muro carrega em si a noção de delimitar, ou seja, um muro significa o limite até onde pode chegar o meu “eu” sem invadir o espaço do “eu” do meu próximo. Assim, o muro delimita os espaços do sujeito em sua interação constante com o outro. Neste sentido, faz-se necessário ressaltar que esta interação se refere tanto às relações sociais, políticas e econômicas quanto às relações emocionais, psicológicas e afetivas.

Enfim, o que podemos dizer depois de todas estas reflexões? Será o muro um mal necessário para tornar possível a existência da convivência humana? Ou será o muro algo bom e fundamental para que o ser humano possa desenvolver interações consigo mesmo e com o outro de forma sadia? Precisamos mesmo erguer mais muros? Ou temos mais é que por abaixo os tantos que já existem?

Nilson Antônio da Silva

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